Por Tadashi Katsuren
Isso é, em opinião pessoal, a essência do gênero Slice of Life. São diversas as obras que possuem-na como um subgênero, histórias que tratam de uma causa maior e de um enredo complexo e trabalhado que margeiam a vida convencional, mas não ingressam nela por inteira. Por outro lado, aqueles títulos que a tem como sua essência, são aqueles que praticamente abraçam a causa do dia a dia, animes e mangás que cuidam do que você comeu no café da manhã, ou sobre qual a rotina de serviço que você tem semanalmente. Nada mais. É o tipo de obra que você, depois de vinte episódios ou dez volumes olha pra trás e diz “Nossa, já aconteceu tudo isso nesses capítulos? Esse mangá passou voando...”. É exatamente a mesma sensação. É um pedaço (slice) da (of) vida (vida). Embasado nessas definições do gênero, hoje trago-lhes uma obra que considero uma das que mais mergulha dentro do gênero que pude ler até agora. Falo hoje do mangá de Aki Eda...
BONNOUJI
Geralmente quando o teor alcoólicode uma pessoa está bem além dos níveis ponderáveis à sociedade, ela costuma agir e reagir de forma diferente aos impasses de sua vida. Já aconteceu comigo, e curiosamente, foi este o instrumento do destino utilizado para unir os protagonistas deste mangá. Michiyo Ozawa acaba de chegar ao seu prédio depois de uma noitada com suas amigas, estando ainda bêbada e desesperadamente necessitada para usar o banheiro. Desnorteada, impaciente e em extremo apuro, ela faz algo que só conseguiria realizar se estivesse no estado em que se encontrava: Uma vez que seu apartamento fica na segunda metade do prédio, ela para aleatoriamente no apartamento de alguém de algum andar abaixo do seu, toca a campainha e pergunta se poderia usar o banheiro dela.
Agora, entenda, não é todo dia que alguém toca a campainha de sua casa para perguntar se poderia usar o seu banheiro. É estranho, é bem incomum. Imagine agora que esta situação ocorra na conservadora e reservada terra do sol nascente, chega a ser quase inconcebível. Isso passa longe do que seria o cotidiano de uma pessoa normal, onde está o slice of life? Paciência, jovens gafanhotos, há mais adiante. Quem atende à porta é nosso segundo protagonista, o vizinho de prédio de Ozawa, Zenji Oyamada, que depois da surpresa atende prontamente ao pedido de Michiyo e concede a ela sua privacidade.
Realizadas as devidas necessidades, Ozawa vai agradecer o seu anfitrião pela sua paciência e desculpar-se pela intromissão no apartamento alheio. E nessa hora ela finalmente bota os olhos no apartamento do rapaz, deixando-a completamente distraída de sua missão inicial.
O apartamento de Oyamada é uma mistura de muitos itens de diversos hobbies e locais do mundo. De inúmeras culturas e com diferentes serventias, haviam ali estátuas indianas, lanternas orientais, action figures, dentre muitos outros itens. O anfitrião sana a curiosidade de sua inesperada visitante explicando-a: O seu irmão disse que aproveitaria a vida até que fizesse 30 anos, e por isso, acaba comprando tudo que se interessa para testar, sendo estes itens desde possíveis acessórios eróticos até decorações diversas. E como ele compra muitas coisas de muitos lugares, ele não pode lidar com tudo e os envia para a casa de Oyamada, como se fosse um depósito.
Aí está a graça: Toda semana, Oyamada recebe em sua casa inúmeras caixas, sempre contendo uma surpresa diferente. Torna-se uma diversão poder abri-las como se fossem presentes que você não tem ideia do que podem ser. Para exemplificar, ele abre uma das caixas e o destino guia a história para que esta contenha dentro bebidas alcoólicas caras - como já estavam ali, Oyamada convida Ozawa para beber um pouco com ele. Daí uma singela amizade nasce, e o dono da casa deixa as portas abertas para sua visitante, dizendo que poderia passar por ali sempre que quisesse.

Percebe-se a evolução das caixas abertas de acordo com a decoração do quarto, que a cada nova leva de caixas muda em algum aspecto e de alguma forma, ao tempo que vemos um leve e singelo desenvolvimento de personagens. O anime possui um pouco de drama, um pouco de romance e um pouco de comédia; todos em doses moderadas, de modo que você não consegue considerar o mangá sendo daquele gênero (com exceção de alguns pouquíssimos capítulos que puxam mais pra um desses lados), contudo, de maneira geral, o foco dele é o dia a dia dos personagens, vistos através de um ponto de encontro que eles tem em seus horários livres.
Dentre todos os mangás que pude ler até agora, nunca achei um com um clima mais light que “Bonnouji”. Este não é um mangá para você ler caso procure uma trama incrível, um vilão cruel que quer acabar com os planos dos protagonistas, personagens que evoluem de acordo com o passar dos acontecimentos dos capítulos. Não. "Bonnouji" é um mangá que não possui antagonistas, é uma leitura em que você pode simplesmente relaxar e curtir o que acontece, como se você fosse um amigo invisível e intangível da cena que está passando em sua frente. Caso esta obra ganhasse uma adaptação animada para televisão, seria o tipo de anime que eu aconselharia veementemente para que fosse assistido semanalmente, e não maratonado de uma vez só. Se é um fã deste tipo de história, vez ou outra, “Bonnouji' é feito para você.
Sendo uma história curta, a autora fez muito bem em não optar por uma gama de personagens exageradamente grande. De forma que os principais diálogos do mangá inteiro se dão em torno de quatro personagens na grande maioria das vezes.
Michiyo Ozawaé nossa protagonista. Ela trabalha em uma empresa da cidade e recentemente passou por um fato que mudou os rumos de sua vida de maneira quase drástica. Com uma cara alegre e sempre sorridente, Ozawa é carismática e extremamente empolgada com o que está em frente de seus olhos naquele momento; da mesma forma, ela é espontânea e honesta consigo mesma, não conseguindo conter suas emoções de florescerem nos seus atos, gestos e expressões. Toda vez que acompanhava sua jornada diária eu acaba sentindo quase o meu próprio sentimento do dia: Nossa, como quero terminar logo o meu horário de expediente para poder ir fazer o que quero.
Zenji Oyamadaé nosso protagonista. Diferente de Ozawa, ele quase sempre está em sua própria casa, uma vez que trabalha em home office pelo seu computador. Em contraste com as emoções saltadas de sua dupla, Zenji é calmo e contido, sendo muitas vezes cauteloso com o que fala e como fala, deixando de expressar suas reais intenções com certa frequência. O ar de tranquilidade que o personagem principal traz consigo é um belo contraste com o seu quarto. Analise comigo: Uma vez que ele é o dono do Bonnouji, um lugar cheio de itens das mais diferentes razões para estar ali, a sua personalidade influencia muito em como o ambiente se torna para aqueles que entram nele. Deste modo, a tranquilidade deste protagonista contrasta com a boa ambientação do Bonnouji para pessoas que vem de fora.


Os personagens de Bonnouji são levemente estereotipados, mas eles estão longe de atingirem o grau de exagero que encontramos em outras obras. São personalidades críveis, que você dá o braço a torcer de que possam existir na vida real, o que dá um tom bem mais realista para as pequenas e divertidas situações pelas quais os personagens passam. E, caso já esteja se perguntando: Prefiro não comentar nada sobre o irmão de Oyamada nestas descrições, fica o mistério para quem quiser desbravar o curto mangá.
“Bonnouji” é uma obra de demografia Seinen, publicada pela Comic Flapper, uma revista que publica títulos de diversos gêneros, variando desde “Tonari no Seki-kun”, passando por “Vampire Hunter D”, até chegar a um título chamado “Vamos lá! (Bamora!)”, de futsal; dentre inúmeros outros que podem ser citados por já terem recebido adaptação para televisão ou cinema. É um mangá já finalizado, possuindo curtos três volumes que totalizam 36 capítulos, tendo sido lançado de abril de 2008 até outubro de 2012. Considerando o seu público alvo, não é um mangá aconselhável para menores de quinze anos, por conter em seu decorrer algumas cenas um pouco mais maduras vez ou outra.
Quando tratamos da arte do mangá, preciso ser bem sincero em dizer que ela não tem grandes detalhes, muito menos alguma excepcional habilidade. O traço de “Bonnouji” é simples e limpo, e como muitas vezes as cenas acontecem dentro de ambientes fechados, podemos ver que o cuidado com o background das mesmas não é tão grande, mas pelo menos consegue nutrir a necessidade de preenchimento do fundo de uma cena. O design dos personagens é muito do meu agrado; embora simples, a autora tem a habilidade mais do que suficiente para mostrar as emoções de cada um deles através de seus gestos e expressões faciais e corporais.
Me perguntar se gosto de “Bonnouji” nunca foi garantia de uma resposta imparcial. Este mangá é um de meus preferidos no gênero slice of life, e pelo fato de ser um título de poucos volumes, já o li mais de dez vezes no correr destes últimos anos. É um mangá com personagens cativantes vivendo uma vida comum com um tom de surpresa e curiosidade, uma obra leve que garante que não terá ela pipocando em sua mente após terminá-la, bem como é um mangá que carrega uma pequena e singela história, que é contada de forma tão lenta e sutil que você quase não vê passar. Até que você chega no final e diz: “Nossa, já acabou?”.